Por João Baptista Herkenhoff
Dentre as milhares de decisões que proferi na carreira de juiz, há
uma que me traz uma lembrança especial porque mudou a rota de uma vida.
A
sentença a que me reporto veio a se tornar muito conhecida porque
pessoas encarregaram-se de espalhá-la: por xerox, primeiramente; depois
por mimeógrafo; depois por e-mail; finalmente, veio a ser estampada em
sites da internet. Primorosos trabalhos de arte foram produzidos a
partir do caso, por pessoas que não conheço pessoalmente: Odair José
Gallo e Mari Caruso Cunha (versões sonoras e com imagens).
A protagonista do caso judicial chamava-se Edna.
Hoje,
aos 76 anos, a memória visual me socorre. Sou capaz de me lembrar do
rosto de Edna e do ambiente do fórum, naquela tarde de nove de agosto de 1978, há trinta e cinco anos portanto. Uma
mulher grávida e anônima entrou no fórum sob escolta policial. Essa
mesma mulher grávida saiu do fórum, não mais anônima porém Edna, não
mais sob escolta porém livre.
Após
ouvir, palavra por palavra, o despacho que a colocou em liberdade, Edna
disse que se seu filho fosse homem ele iria se chamar João Batista. Mas
nasceu uma menina, a quem ela deu o nome de Elke, em homenagem a Elke
Maravilha.
Edna declarou no dia da sua liberdade: poderia passar fome, porém prostituta nunca mais seria.
Passados
todos estes anos, perdi Edna de vista. Nenhuma notícia tenho dela ou da
filha. Entretanto, Edna marcou minha vida. Primeiro, pelo resgate de
sua existência. Segundo, pela promessa de que colocaria no filho por
nascer o nome do juiz. Era o maior galardão que eu poderia receber,
superior a qualquer prêmio, medalha, insignia, consagração, dignidade ou
comenda.
Lembremo-nos de Jesus diante da viúva que lançou duas moedinhas no cesto das ofertas:
“Eu
vos digo que esta pobre viúva lançou mais do que todos, pois todos
aqueles deram do que lhes sobrava para as ofertas; esta, porém, na sua
penúria, ofereceu tudo o que possuía para viver.” (Lucas, 21, 1 a 4).
Edna
era humilde e pobre. Sua maior riqueza era aquela criança que pulsava
no seu ventre. Ela não me oferecia assim alguma coisa externa a ela, mas
algo que era a expressão maior do seu ser. Se a promessa não se
concretizou isto não tem relevância, pois sua intenção foi declarada. O
que impediu a homenagem foi o fato de lhe ter nascido uma menina. Em
razão do que acabo de relatar, se eu encontrasse Edna, teria de
agradecer o que ela fez por mim. Edna me ensinou o que é ser juiz. Edna
me ensinou que mais do que os códigos valem as pessoas. Isso que eu
aprendi dela tenho procurado transmitir a outros, principalmente a meus
alunos e a jovens juízes.
Segue-se a íntegra da decisão extraída da folha 32 do Processo número 3.775, da Primeira Vara Criminal de Vila Velha:
A
acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa
sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de
terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada
pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este
mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que
tem dentro de si, mulher diante da qual este juiz deveria se ajoelhar,
numa homenagem à Maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em
vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.
É
uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e
liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o
som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo,
para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e
sobreviver.
Quando
tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo
jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao
mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor
os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de
conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar,
Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si.
Este
Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios,
trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob
prisão.
Saia
livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à
luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo
novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.
Expeça-se incontinenti o alvará de soltura.
João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado e escritor. Foi um dos fundadores da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória. Tem
participado de debates, em todo o território nacional. O escrito acima,
que já havia sido publicado em jornais, integra agora o livro Encontro do Direito com a Poesia – crônicas e escritos leves – GZ Editora, Rio de Janeiro.
E-mail: jbherkenhoff@uol.com. br
Homepage: www.jbherkenhoff. com.br
É livre a divulgação deste texto, por qualquer meio, ou veículo, inclusive através da transmissão de pessoa para pessoa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário