Pela
primeira vez no curso de minha existência, vivi por uma noite a
situação de flagelado. Foi uma experiência que me impõe um salto
existencial.
Eu
voltava de Vitória, onde acompanhei minha mulher para uma consulta
médica, e me dirigia a nossa residência na Praia da Costa. No meio do
caminho caiu o temporal que deixou milhares de famílias capixabas ao
desabrigo.
Quando
estávamos diante da alça, cuja transposição nos levaria bem próximo do
edifício onde moramos, o táxi que nos conduzia percebeu que não seria
possível seguir adiante. O carro ficaria afogado na água, se tentasse
vencer a correnteza. Também já estava totalmente interrompida a passagem
pela Rua Hugo Musso, a segunda alternativa possível. O taxista subiu
até o topo do Morro do Marinho, onde estaríamos a salvo das águas. Disse
que deixaria o carro estacionado ali e seguiria a pé para sua casa, no
meio da lama. Deixou-nos a ver navios, como se diz na linguagem popular.
Eu me vi na situação de flagelado: ao relento, sem ter onde reclinar a
cabeça. Pensei nos milhares, em situação infinitamente pior: não num
desabrigo eventual, que podia ser contornado com um pouco de paciência,
mas num desabrigo total. Meu filho, residente na Praia do Canto, disse
que iria a nosso encalço. Nós lhe pedimos que não se lançasse a tão
temerária jornada, uma vez que não poderia transpor a correnteza.
Quando
estávamos aparentemente entregues a nossa própria sorte, eis que se
aproxima um casal que não conhecíamos e também não nos conhecia: Miguel
Motta Neto e Valquíria Motta. Esse casal nos convidou para que nos
dirigíssemos à casa deles, que ficava ali bem perto. Fomos então
recebidos por Dona Mara, Mãe do Miguel, e ficamos conhecendo o filhinho
do casal – Gabriel, que tem a mesma idade de nossa netinha Lis. Dona
Mara nos ofereceu um café com broas feitas em casa.
Estávamos
a projetar como seria nossa ida em direção ao edifício onde moramos, na
Avenida Antônio Gil Veloso. Seria preciso esperar que o nível das águas
baixasse. Foi aí que Miguel e Valquíria atalharam nosso pensamento: não
iríamos para nossa residência, dormiríamos na casa deles.
Felizes
sob a proteção daquele lar, antevimos que o assoalho de madeira seria
mais confortável que o leito que nos fosse oferecido num castelo.
E
eis que Valquíria, Miguel e Dona Mara nos propõem um absurdo: eles
todos se ajeitariam no chão e nós dormiríamos na confortável cama do
quarto do casal. Tentamos sem êxito dizer não.
E
a noite que supúnhamos seria de flagelado tornou-se uma celebração de
Fraternidade, bem própria para o tempo de Natal. O salto existencial que
mencionei no início deste artigo consiste no desafio de tentarmos ser
para outros tão irmãos quanto foram para nós Miguel, Valquíria e Dona
Mara.
João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado, professor e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com. br
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